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CONTRA O ATRASO, A VOZ DE UM JUIZ DA JUSTIÇA MILITAR

Os ataques na mídia continuam. A poucos minutos assisti o Jornal da Band e o Jornal da Globo, que propugnaram: “A nova lei (sic) dos direitos humanos desagrada a todos”. Lei? Mas a PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos, aprovado na 3ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, construída por Conferências estaduais e municipais democráticas, mais até do que as edições anteriores, são diretrizes e não legislação. Repoduzo abaixo entrevista do Bonna Garcia, que não é petista e muito menos comunista. É um militante da democracia. É também juiz do Tribunal de Justiça Militar. Na entevista ele fala de sua trajetória e das posições do seu parceiro de partido Ministro Jobim, entre outros. Fala também dos avanços que tiveram Chile e Argentina com relação aos seus respectivos períodos de ditadura. A entevista é de imprescíndivel leitura para todos aqueles que antes de qualquer farda ideológica, defendem a democracia como instrumento fundamental do exercício da cidadania.

Luiz Müller

Bona Garcia falou em entrevista especial para o Jornal do Comércio.

João Carlos Bona Garcia retornou ao Brasil há 30 anos, no Natal de
1979, após a Lei da Anistia. Defensor da abertura dos arquivos sobre a
ditadura militar, ele avalia que o aspecto mais relevante do Programa
Nacional de Direitos Humanos, proposto pelo governo federal, é a
possibilidade de abrir ao público fatos que marcaram o período
(1964-1985), como prisões e torturas a quem desafiava o regime. “Vai
fazer crescer a confiança do povo brasileiro nas instituições”,
projeta.

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele aponta que falta memória
para a democracia brasileira. “O importante é que a população conheça
o que foi aquele período e possa optar sempre pela democracia”,
defende. Ele lembra que a sociedade também teve uma participação
fundamental na instalação do regime de exceção. “A classe dominante
foi lá bater na porta dos militares para que assumissem o comando e
rasgassem a Constituição.”

Bona Garcia analisa, ainda, por que o presidente Lula não avançou
tanto nesse assunto e mostra confiança em progressos com o próximo
chefe da Nação – seja a ministra-chefe da Casa Civil Dilma Rousseff
(PT), o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), a ex-petista e
senadora Marina Silva (PV) ou o ex-governador e hoje deputado federal
Ciro Gomes (PSB).

Bona Garcia fala ainda de sua atuação como juiz do Tribunal de Justiça
Militar do Rio Grande do Sul.

Jornal do Comércio – O que o senhor acha da revisão da Lei da Anistia,
em debate no Congresso Nacional?
Bona Garcia – Primeiro, sou muito grato à Anistia, ao Congresso
Nacional. Fui torturado por gente das Forças Armadas, pela Polícia
Civil, pelo DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), entre 1970 e
1971. Agora, não sou contra os órgãos de segurança do Estado hoje. O
que está havendo é uma má interpretação das coisas. Esse decreto, que
ainda deve ser aperfeiçoado, busca que venha à tona o que ocorreu no
período da ditadura militar – as prisões ilegais, tortura, enfim, a
questão da memória. Isso não pode ser escondido da população, faz
parte da história. Mas não quer dizer que se vá julgar as pessoas.

JC – Mas o Exército protestou contra o Programa Nacional de Direitos Humanos.
Bona Garcia – Chile, Argentina e Uruguai avançaram nessa questão da
memória, abertura dos arquivos e pacificação dos setores envolvidos
naquele período. Isso está faltando (ao Brasil). As Forças Armadas têm
uma trajetória extraordinária, é uma instituição que dá orgulho ao
povo brasileiro. Mas não concordo que setores do Exército não queiram
discutir determinados assuntos.

JC – E por que tanta rejeição?
Bona Garcia – Isso vai a passos, no entendimento, na discussão, no
convencimento. Dirigentes das Forças Armadas, o próprio ministro da
Defesa, Nelson Jobim, tomou uma atitude de se posicionar contra o
projeto. Jobim é uma pessoa extraordinária, esclarecida, tem que
reunir os comandantes e explicar, convencê-los que isso não é contra
as Forças Armadas. Ao contrário, vai crescer a confiança do povo
brasileiro nas instituições.

JC – Contesta-se, por exemplo, a proibição a homenagens em locais
públicos com nomes de pessoas que tenham cometido crimes na ditadura.
Bona Garcia – Não dou a mínima importância para a questão de nomes de
rua, o importante é que a população conheça a história para dar valor
à democracia, à liberdade, às instituições que compõem o Estado
Democrático de Direito. Enfim, para que ela tenha consciência da
importância dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e do
Ministério Público independentes. Que conheça o que foi aquele período
e possa optar sempre pela democracia.

JC – O senhor liderou uma comissão pela abertura dos arquivos aqui no Estado.
Bona Garcia – Estamos trabalhando nisso há muito tempo, presidimos a
Comissão da Luta contra a Ditadura para reunir documentos. Buscava
organizar um arquivo, com registros da memória daquele período no Rio
Grande do Sul. Esse material está no Arquivo Histórico e deve ser
retomado, com suas discussões. Os arquivos devem ser abertos, as
pessoas têm o direito de conhecer a história daquele período da
ditadura.

JC – Em nível nacional, houve avanços nesse sentido?
Bona Garcia – Sim, com as leis do próprio governo do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, que foi pressionado a abrir os arquivos. Mas
tudo ainda é muito difícil. Tem toneladas de documentos e a população
não tem acesso. Isso para mim faz parte da história e tem que ser
aberto. Assim como dizem “por que a esquerda não mostra seus erros?”.
A esquerda está fazendo, quantas vezes fez sua autocrítica? Não tem
problema em reconhecer equívoco, é mérito, engrandece. E as Forças
Armadas sairiam engrandecidas se abrissem os arquivos. Esconder que
setores dessas instituições, na calada da noite, clandestinos,
prenderam gente, torturaram e mataram não dá, não é possível aceitar
isso. Como esconder que o jornalista Vladimir Herzog foi lá, se
apresentou e apanhou até morrer. Não pode.

JC – Quais seus argumentos para vencer a resistência que existe?
Bona Garcia – Não vai desmerecer em nada a instituição Forças Armadas,
acho até que ela se solidifica ainda mais ao reconhecer o passado. As
pessoas têm o direito de saber o que houve no País, conhecer os
documentos, a história, estudar, pesquisar e analisar. O projeto deve
se centrar nisso, o resto é de menos importância, é outra discussão. E
para o presidente Lula – que está no topo de popularidade, “é o cara”
segundo o presidente (dos Estados Unidos, Barack) Obama – ainda
faltava essa parte.

JC – Por que o presidente Lula não abriu os arquivos da ditadura ainda?
Bona Garcia – Ele vai tateando, Lula deve ser muito aconselhado, mas
ele busca seguir um pouquinho o governo Getúlio (Vargas), Juscelino
(Kubitschek), ou seja, joga com todos os lados e avança. Lula tem uma
formação de sindicalista de resultados, na mesa de negociação. Ele vai
negociando, ganhando seu espaço, sabe que não dá para chegar e
enquadrar todo mundo do Exército. Essa revolta dos militares também
está associada a um descontentamento anterior, questões da compra dos
jatos – os militares querem um, Lula quer outro. Tudo é um somatório.

JC – E a tese de que existe “revanchismo”?
Bona Garcia – Eu, por exemplo, fui preso, torturado, mas não sou
revanchista. Vou lembrar sempre? Claro que sim, faz parte da minha
vida. Mas não tenho rancor, mágoa, eu olho para frente. E conhecendo
Paulo Vanucchi (secretário nacional de Direitos Humanos), digo que ele
também não é revanchista, assim como pessoas do ministério não são
revanchistas, a (ministra-chefe da Casa Civil) Dilma não é revanchista
nem o (ministro da Justiça) Tarso (Genro).

JC – Mesmo assim, muita gente se questiona “por que levantar o tema agora”?
Bona Garcia – Não é revanchismo. O objetivo é que as pessoas tenham
acesso à história deste País. Isso é que é importante. Esse decreto
vai abrir a discussão, as pessoas têm interesse de conhecer. Se
perguntar na universidade hoje a jovens de 20 anos, ninguém sabe do
período passado, da ditadura. Participei de vários debates nas
universidades e poucos tinham conhecimento. No mundo inteiro as
pessoas conhecem a história do seu país, por que nós aqui não podemos?
Falta história para a democracia brasileira.

JC – E o acesso aos documentos?
Bona Garcia – Acessibilidade é fundamental – não adianta ter
publicidade e não ter acesso. Por exemplo, fiz um ofício e mandei para
o Arquivo Nacional, pedindo o que tinha lá a meu respeito do antigo
SNI (Serviço Nacional de Informações). Veio um calhamaço, pesado, com
fatos que eu nem lembrava mais, da época em que eu tinha vivido no
Chile, na França, na Argélia, estava tudo escrito. As cartas que eu
mandava para minha família…

JC – O próximo presidente da República poderá avançar mais nessa parte
da memória e da abertura dos arquivos?
Bona Garcia – Sim, porque é como uma escada em que se vai avançando. E
fico muito feliz de estar vivendo em um Brasil com esses candidatos (à
presidência da República), um melhor que o outro. José Serra é uma
pessoa extremamente progressista, viveu naquele período (da ditadura),
é competentíssimo, teve uma trajetória exemplar. E Dilma Rousseff
reúne vida política com uma visão de País muito importante. Então,
sendo os dois, estamos de parabéns. Marina Silva também é
extraordinária, Ciro Gomes é uma pessoa engajada. Isso é resultado do
regime democrático que estamos vivendo.

JC – Como o senhor avalia a democracia brasileira?
Bona Garcia – É incipiente, ainda não está consolidada, falta
experiência e vivência. Deve ter uma imprensa atuante e responsável –
a imprensa está fazendo o seu papel, mas às vezes há uma ansiedade de
todos – de uma forma geral. Qualquer informação e já se tem
julgamento, muda a opinião pública…

JC – Em 2009 se falou até em fechar o Senado.
Bona Garcia – Bobagem. Porque se alguns senadores erraram, não quer
dizer que a instituição Senado deva ser fechada. Se fosse assim,
teríamos que fechar a sociedade. A ansiedade ainda é muito forte. O
que mais me ensinou o Poder Judiciário? É que muitas vezes aquilo que
aparenta ser não é. Precisa ter calma, esperar o processo para
analisar e depois chegar a uma conclusão. Queremos fazer tudo rápido.

JC – O que, por exemplo?
Bona Garcia – A Constituinte de 1988 quis colocar no papel tudo, para
garantir que não ocorresse mais um regime ditatorial, e isso aí não é
possível. Não é questão de escrever, é a cultura do povo. Isso só se
aprende no processo e nunca o tivemos seguido, sempre foi interrompido
por força militar. E todo mundo vai em cima das Forças Armadas, mas
esquecem que a classe dominante no Brasil foi uma grande responsável
pelo regime, na medida em que foi lá bater na porta dos militares para
que assumissem o comando e rasgassem a Constituição.

JC – Por causa das medidas anunciadas pelo presidente João Goulart?
Bona Garcia – As reformas de base do Jango. E olha, Jango estava longe
de ser um comunista! Nem (Leonel) Brizola passava perto. Mas se
assustaram, acharam que iria ser um governo comunista e deram o golpe.
E o que queriam as reformas de base? O desenvolvimento brasileiro. E
aí nos atrasamos. Então, o estigma não pode ficar só nas instituições,
do Estado, mas em cima de setores da própria sociedade, que
propiciaram o golpe militar de 1964 e o apoiaram – as grandes marchas
por Deus, pela família, pela pátria, é isso que a juventude e o povo
brasileiro têm que conhecer. O Brasil ainda não tem essa memória.
Esquece rápido, existe medo de que as pessoas saibam o que se passou.

JC – Falta memória e história, como o senhor disse.
Bona Garcia – É preciso tempo para formar a história. Fico muito feliz
com Lula e o PT no governo, que aprenderam imensamente. Antes, o PT só
criticava, hoje é criticado, há uma evolução nesse sentido. E tenho
muita esperança no futuro presidente do País – pode ser Dilma, Serra,
Marina Silva, Ciro -, o Brasil vai avançar, vamos construir um País
muito melhor do que o de hoje, com um amadurecimento maior. Tem gente
que diz: “política não presta”. Presta, sim! Vai viver na pele deles
(políticos) para ver. Não se pode acabar com uma instituição porque
teve problemas. As instituições são maiores do que as pessoas e o
nosso papel é fortalecê-las, democratizar cada vez mais. É preciso ter
direito à liberdade, à privacidade, a instituições independentes. Foi
para isso que lutamos tanto tempo.

JC – É preciso tempo para avançar…
Bona Garcia – Claro. Houve avanços nos governos Sarney e Collor? Sim.
Fernando Henrique foi um avanço. E Lula, mais ainda. E o próximo
presidente que virá vai aperfeiçoar ainda mais. Aí nós vamos ter
experiência democrática. Lula está no topo em termos de popularidade
porque teve a inteligência e a capacidade de preservar e aperfeiçoar a
política de Fernando Henrique. Lula aperfeiçoou o sistema de política
social do Fernando Henrique e fez o Bolsa Família. Muita gente pode
dizer: “Ah, mas o Lula está dando, é populista”. Mas vai para o
Nordeste e observa: para quem não tem, aquilo é a redenção. É muito
fácil falar quando você tem e olha de fora. Agora vai lá, passa
necessidade e vê se não é importante.

JC – Para fechar: como encara a tarefa de ser juiz do Tribunal de
Justiça Militar depois de todo seu histórico de luta contra o regime
militar?
Bona Garcia – Tem outra história interessante: quando assumi a
diretoria do Banrisul e fui diretor da Associação dos Bancos do
Estado, a imprensa de todo País fazia o paralelo: “de guerrilheiro a
diretor de banco”. Depois, quando fui para o Tribunal Militar, também
fizeram um paralelo: “de guerrilheiro a juiz militar”. Mas quero dizer
que para mim está sendo uma vivência extraordinária, sinto-me muito
bem exercendo o cargo. E o juiz tem a parte técnica, do Direito, mas
também tem uma grande parte de vivência. Então, esse período foi muito
gratificante e enriquecedor. Muita gente não entendia. Eu respondo o
seguinte: vivemos numa democracia, felizmente. E essa democracia tem
as suas instituições, com uma razão de existir. O Tribunal de Justiça
Militar tem mais de 90 anos, a idade da Brigada Militar. E, primeiro,
não se pode confundir pessoas das instituições com a instituição.
Segundo, a Justiça Militar não julga civis, julga militares – muita
gente confundia com a Justiça Militar Federal. A estadual julga
policiais, crimes cometidos pelos integrantes da Brigada Militar. No
Exército, por exemplo, eu estive na Justiça Militar como réu, é
diferente.

PERFIL
João Carlos Bona Garcia, 63 anos, é natural de Passo Fundo. Ingressou
no movimento estudantil na adolescência e participou de uma
dissidência do Partido Comunista. Em 1969, veio a Porto Alegre.
Integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi preso no
início de 1970. Só deixou o cárcere em 1971, em troca da libertação do
embaixador suíço no Brasil, sequestrado pela VPR. Viveu no Chile até a
queda de Salvador Allende em 1973, passou por Argentina, Argélia e
fixou-se na França, onde viveu até a Anistia, em 1979. Formou-se em
Economia na Sorbonne. Na volta ao Brasil, fez Direito na Ritter dos
Reis. Foi professor, assessor da Assembleia Legislativa e, filiado ao
PMDB, candidatou-se a prefeito em Passo Fundo e a deputado estadual.
Atuou no governo de Pedro Simon (PMDB) como subchefe da Casa Civil.
Com Antonio Britto, foi presidente da Fundação de Desenvolvimento de
Recursos Humanos, diretor do Banrisul e chefe da Casa Civil. Em 1998,
Britto o nomeou para ser juiz do Tribunal de Justiça Militar, cargo
que ocupa até hoje. É autor do livro Verás que um filho teu não foge à
luta.

Notícia da edição impressa do JC de 11/01/2010


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