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Charlie Hebdo. A liberdade entrincheirada entre dois tipos de radicalismo

Republicado do Jornal i
Por Joana Azevedo Viana
Doze mortos e um dia negro para a liberdade de expressão deverão assinar ganhos da extrema-direita europeia

Maomé não estava na capa da última edição do “Charlie Hebdo”, que chegou às bancas francesas ontem, antes de três homens encapuçados entrarem na redacção parisiense à hora da reunião da manhã e matarem 12 pessoas, incluindo quatro dos mais famosos cartoonistas de França e dois agentes da polícia. Quem estava na capa era Michel Houellebecq.

Aos distraídos, falamos de um escritor francês cujo sexto romance, “Soumission”, chegou às livrarias do país precisamente ontem. “Em 2015 vou perder os dentes”, diz uma caricatura do agente provocador da literatura francesa. “Em 2022 vou cumprir o Ramadão.” Como sempre nos habituou, o semanário satírico acertou na muche. Na muche de Houellebecq, pelo menos, que ainda antes de lançar o romance já estava no olho do furacão, por estar a alimentar a islamofobia europeia.

O autor continua a defender que o cenário do livro, uma França que elege um presidente muçulmano democraticamente e que acorda islamizada, é “bem possível”. Não em 2022, como em “Submissão”; uns anos depois, quiçá. Mas França poderá ser o país europeu onde essa realidade está mais distante, “ao contrário da Alemanha”, defende ao i Tariq Ali.

Para o escritor paquistanês, editor da “New Left Review” e colunista do “The Guardian”, “a islamofobia é encorajada em França por políticos da extrema-direita” como Marine Le Pen – derrotada nas presidenciais fictícias do novo livro de Houellebecq, mas possível futura líder do país já a partir de 2016, a julgar por recentes sondagens. Na Alemanha, aponta Ali, o governo de Angela Merkel e políticos como o antigo chanceler Helmut Schmidt “estão a classificar como inaceitáveis os comportamentos a que estamos a assistir”, como as manifestações de segunda-feira contra muçulmanos organizadas pelo PEGIDA.

No rescaldo do ataque de ontem, muitos desejavam que se provasse que foram extremistas de direita, e não fundamentalistas islâmicos, os responsáveis pelo sangrento ataque, que deverá ter óbvias repercussões ao nível securitário na União Europeia. (Até ao fecho desta edição, a polícia francesa ainda não tinha encontrado os três suspeitos a monte.)

Os elementos do autoproclamado Estado Islâmico – que anunciou a instalação de um califado no Iraque e na Síria, em Junho, e tem alumiado a crescente xenofobia na Europa, ao matar indiscriminadamente jornalistas e activistas ocidentais e ao fazer de jovens europeus desiludidos carne para canhão na sua jihad – deverão ter esfregado as mãos de contentamento. Mas dentro da Europa, e contra os avisos da chancelaria alemã, o PEGIDA também pareceu regozijar-se com o que aconteceu no “Charlie Hebdo”.

“Os islamistas, contra os quais temos advertido nas últimas 12 semanas, mostraram hoje em França que não são capazes de praticar a democracia e que só vêem a violência e a morte como solução”, escreveu no Facebook o Europeus Patrióticos Contra a Islamização do Ocidente. Depois do atentado, o PEGIDA convocou uma nova marcha para ontem, alargando os protestos de segunda-feira a outros dias da semana.

O ministro alemão do Interior apelou ao bom senso, dizendo que o ataque em Paris não tem nada a ver com o islão. “É imensamente importante”, declarou Thomas de Maiziere, “sublinhar a diferença entre extremismo islâmico e o islão num dia como o de hoje.” Mas será difícil separar as águas numa Europa cada vez mais fracturada e desesperada, onde a pobreza dá a mão à cega atribuição de culpas.

“A resposta da Europa a nível de segurança”, defende ao i José Manuel Anes, “não deverá subestimar esta ameaça, mas haverá um esforço paralelo para separar o trigo do joio, para não confundir radicais islâmicos com crentes moderados da religião.” Em França, contudo, o caso poderá ser mais bicudo, admite o fundador do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo. Depois de um ataque como este, “a população vai estar necessitada de uma reacção forte” e, na sua ausência, poderá “haver uma guerra civil, inicialmente psicológica, com forte discriminação dos muçulmanos”.

Não se sabe qual será a reacção do governo de François Hollande, nem tão-pouco da União Europeia, onde as tentativas de prevenir atentados como o de ontem estão a alcançar níveis inéditos – caso do novo programa pré-criminal do Reino Unido, que pede a educadores e professores que denunciem “potenciais terroristas” nas suas salas de aula.

Nesta espécie de radicalismo contra radicalismo, o islâmico contra o nacionalista, quem perde é a liberdade de expressão, dos muçulmanos atacados em mesquitas por nacionalistas suecos, nas últimas semanas, às vítimas do “Charlie Hebdo”.

No seu curto comunicado em reacção ao atentado, Salman Rushdie lembrou que “as religiões, como todas as outras ideias, merecem crítica e o nosso desrespeito sem medo” – palavras do homem que teve a cabeça a prémio por causa dos seus “Versículos Satânicos”, tão polémico para os árabes como o “Soumission” de Houellebecq já parece ser para os franceses. Rushdie e Houellebecq criticam o totalitarismo religioso de formas diferentes, talvez com intenções diferentes, o totalitarismo que ontem terá assinado futuros ganhos para a outra face da mesma moeda que é a extrema–direita. A reacção da UE aos dois fenómenos é, em igual parte, um mistério e a provável chave da sobrevivência dos valores democráticos na sua base.


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