Uma surra dos fatos. Literal
30 de setembro de 2009
por Luiz Carlos Azenha
Na quinta-feira da semana passada o Jornal Nacional do Ali Kamel
produziu uma “reportagem” justificando o golpe em Honduras.
Já escrevi a respeito, está aqui
Teria sido apenas um “golpe constitucional” , baseado no artigo
239 da Constituição hondurenha. Um golpe democrático, ou para
salvar a democracia. A mesma justificativa que o jornal O Globo
deu, em editorial, para festejar o golpe de 64 no Brasil.
Leia aqui como o jornal O Globo amou o “movimento de 64”
Ali Kamel aparentemente não leu toda a Constituição hondurenha.
Convenientemente, ele se esqueceu de ler os artigos que dizem
respeito ao direito de defesa e à presunção de inocência. Talvez
ele não se interesse tanto assim por Honduras. Ou talvez
subscreva cegamente a teoria neocon segundo a qual Hugo Chávez é
culpado pelo aquecimento global, pelos congestionamentos em São
Paulo e pelo mato que cresce no Jardim Botânico.
Os neocons americanos e a versão caricatural deles que cresce
mais que mato no Brasil já faz tempo se dedica a fazer do
antichavismo a versão recauchutada do anticomunismo. São
trapaceiros intelectuais cujo discurso irracional encobre a falta
de argumentos. Desde o macartismo o discurso dessa turma é o
mesmo: o mundo está cheio de bichos papões dos quais você não
conseguirá se defender, a não ser com nossa ajuda.
Isso até faz algum sentido político quando dito em Washington.
Afinal, o neoconservadorismo é um movimento genuinamente
americano, cujo valor central é a promoção da supremacia
política, econômica e militar dos Estados Unidos. É a versão
contemporânea daqueles discursos que sustentavam a supremacia
racial dos europeus para justificar as barbáries que praticavam
na África, na Ásia e na América Latina.
Há um tom religioso, milenarista na argumentação dos neocons.
Eles precisam desesperadamente apresentar os outros como
encarnações do demônio. Só assim conseguem vender seus serviços
como exorcistas. Já viram as capas de Veja sobre o MST? Então já
entenderam o que quero dizer.
Mas eu dizia que os neocons americanos fazem sentido no contexto
político e econômico dos Estados Unidos. E lá eles genuinamente
se dão bem. São requisitadíssimos como tropa de choque
intelectual de interesses econômicos gigantescos. Querem saber
quem são? É só ver quem sustenta as duas dúzias de institutos de
Washington que servem de poleiro aos neocons locais. E dar uma
olhada nos patrocinadores de revistas tipo Weekly Stardard, onde
eles pagam marra de “inventores do mundo” diante da elite
subintelectual de Washington.
Os neocons brasileiros são subamericanos, assim como a parte
“bem-sucedida” da geração de FHC era subeuropéia. Só conseguem se
ver assim, ora em uma relação de subordinação, ora em um relação
de superioridade diante de seus interlocutores.
Trocando em miúdos, descontam no Hugo Chávez e no Evo Morales o
profundo sentimento de inferioridade que nutrem em relação aos
genuinamente brancos de olhos azuis. Qualquer idéia original, não
sectária, é uma ameaça a essa construção mental e, por isso,
precisa ser esmagada, especialmente se não tiver recebido
“certificação” superior. Por isso, Lula é a encarnação de tudo o
que deu errado com o Brasil. E Chávez, na Venezuela.
O que nos leva a Zelaya, que é Chávez. E, se Zelaya é Chávez, tem
parte com o demônio. Portanto, quem combate Zelaya é divino.
Assim, Micheletti é divino. Do que resulta a reportagem segundo a
qual Micheletti assumiu o poder de forma constitucional.
É esse pensamento simplista, binário — no popular, de tico e
teco — que guia hoje o jornalismo da mais importante empresa de
televisão do Brasil. E é divertido quando os fatos se encarregam
de espancá-lo.
Horas depois da Globo dizer que Micheletti tinha apenas seguido o
artigo 239 da Constituição hondurenha ao assumir o poder, o homem
baixou um AI5. Fechou uma rádio e uma emissora de TV. Hoje, em
Tegucigalpa, a polícia espancou um colega da Globo, jornalista da
maior competência, que aparentemente “ameaçou” os soldados
fortemente armados.
O mesmo já havia acontecido com repórteres locais e mexicanos.
Sem falar nas centenas de pessoas que foram mortas, presas ou
espancadas ao longo dos últimos noventa dias pelo “governo
interino e constitucional” do JN, pelas quais a emissora passou
batido.
O golpe em Honduras não foi golpe apenas porque o presidente
constitucional foi tirado de pijama do país, sem direito a
defesa, nem julgamento. O golpe representou repressão a todas as
demandas sociais dos eleitores de Zelaya. Ele aconteceu em uma
região marcada pela supressão brutal e histórica de demandas
sociais, frequentemente promovida e em benefício de um pequeno
grupo e em detrimento da grande maioria. Foi, portanto, uma
quartelada clássica, independentemente das filigranas jurídicas
que o editorialista “ditabranda” da Folha e o
Ali Kamel nos querem impingir.
Nessa hora eu gostaria muito de ver o Kamel em Tegucigalpa,
cobrindo o “governo interino” de Micheletti, aquele que assumiu o
poder “por acaso”.
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