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As Relações Entre a Igreja e o Estado (Discurso do Deputado Carlos Mariguella na Constituinte de 1946)

Em um tempo onde a bancada evangélica no Congresso, capitaneada por um cristão corrupto até as entranhas como Eduardo Cunha, coloca em cheque a democracia, o Estado Laico e até a Constituição brasileira,  e também na data de hoje, dia 4 de novembro, data em que se passam 46 anos do assassinato de Carlos Mariguella pela Ditadura Militar, publico discurso do Deputado Carlos Mariguella pronunciado na sessão de 4 de julho de 1946, na Assembléia Constituinte.  No extrato do discurso que publico a seguir, Mariguella, este lutador das causas do povo, assassinado pela Ditadura Militar, debate a relação do Estado com a Religião, resgatando vários pensadores de diferentes épocas e diferentes posições diante do tema. O original, na íntegra, está publicado na Revista Problemas.

“…Na verdade, Sr. Presidente, uma tese precisa ser debatida aqui: a de que nem sempre a Igreja esteve ligada ao Estado, como, também, nem sempre esteve separada dele.

Assim como nem sempre existiu união da Igreja com o Estado, nem a sua separação, é necessário acentuar que o Estado também nem sempre existiu. É que o Estado não é senão a resultante dos antagonismos de classes; e, mais, é a instituição que visa refrear esses mesmos antagonismos. Como instrumento de domínio de classes, tem ele de valer-se de todos os meios para impor a vontade das classes dominantes sobre as dominadas.

Imposto, polícia, cadeia, tribunal, são como que os quatro pontos cardeais do Estado, instrumento de dominação de classes. E não deixa, também, de valer-se de um outro meio, exatamente a religião.

Lenin afirmava — e tenho de citar Lenin porque estou fazendo a demonstração de uma tese materialista-dialética:

“A religião é um aspecto da opressão espiritual que pesa sempre e por toda a parte sobre as massas populares submetidas pelo trabalho perpétuo em proveito de outrem, pela miséria e a solidão. A fé em uma vida melhor, no além, nasce, inevitavelmente, da impotência das classes exploradas contra os exploradores tanto quanto a crença nas divindades, nos diabos, nos milagres, etc. . . nasce da impotência do selvagem em luta contra a natureza”.

Se a religião nasce dessa impotência do selvagem contra a natureza pelo seu desconhecimento dos fenômenos, ou das causas que explicam os fenômenos dessa mesma natureza, e se a religião serve, também como instrumento de opressão das classes dominantes, é claro que o Estado, como instrumento de dominação de classes, não poderia de maneira alguma, deixar de parte a utilização da religião; porque, como diz Marx:

“A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, bem como é o espírito de uma civilização da qual se excluiu o espírito. Ela é o ópio do povo”.

Quer dizer: a religião adormece, a religião faz que os explorados não se possam erguer contra os seus exploradores, a não ser quando se tornam cientes da própria exploração e adquirem a consciência da classe. Mas, assim como a religião era utilizada pelo Estado, a Igreja o foi. O mesmo aconteceu com o Cristianismo. Entretanto, como a tese que procuro demonstrar é de que o Estado nem sempre se tem mantido ligado à Igreja e à religião, faz-se mister, no estudo do início do Cristianismo, observar que este representou uma religião de deserdados, de escravos e, por isso mesmo, se opôs ao Estado durante muito tempo.

Era de Kautsky, ao tempo em que era marxista, a seguinte interpretação :

“A igreja cristã tem sido uma organização de domínio, ora no interesse de seus próprios dignitários, ora no interesse dos dignitários de outra organização, o Estado, onde este conseguiu obter o controle da igreja. Quem batesse estes poderes teria também que bater a Igreja. A luta pela Igreja, bem como a luta contra a Igreja, tem sido, por conseguinte, uma causa de partido, à qual se acham ligados os mais importantes interesses econômicos”.

Como afirmava, porém, Sr. Presidente, que o Cristianismo estava em seu início colocado como a religião dos explorados, dos dominados, devo fundamentar a assertiva. E é o que podemos fazer, se tomarmos a Bíblia e a compararmos com os Evangelhos escritos à época em que o Cristianismo era ainda uma religião de escravos, e com os Evangelhos da época em que o Cristianismo já constituía religião do Estado.

O Imperador Diocleciano sabia, perfeitamente, que não contava mais com os exércitos infiltrados de cristãos que não mais empunhavam o gládio romano e, sim, a cruz, e que não obedeciam às ordens dos césares romanos. Foi Constantino, chamado o Grande, pelos clericais, quem compreendeu ser o único recurso transformar o cristianismo em religião do Estado, e o fez no século IV.

No tempo, portanto, em que ainda não era religião do Estado, dizia Jesus, no Evangelho de São Lucas, escrito nos princípios do século II:

“Dificilmente entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas. Porque mais difícil é entrar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus. (XVIII — 24-25.).

Quer dizer, o problema levantado por Jesus não era o do rico ser mau, nem o do rico não ser religioso, mas, precisamente, o fato do rico ser rico, do rico ser explorador.

Era a mesma coisa que afirmava Jesus, no Sermão da Montanha:

“Bem-aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus; bem-aventurados os que têm fome, porque serão saciados; mas ai dos ricos! ai dos que estão fartos, porque terão fome! ai dos que riem agora, porque depois chorarão!” (Lucas VI-20).

É o mesmo problema, portanto: o rico a ser castigado, não porque seja mau, mas, precisamente, por ser rico e por ser explorador.

Já no Evangelho de São Mateus, escrito no século IV, em que a religião cristã passou, por determinação de Constantino, a ser religião do Estado — o Sermão da Montanha sofre alteração: não se fala mais em bem-aventurados os pobres; fala-se, agora, em “Bem-aventurados os pobres de espírito”. . . o que, na realidade, não tem sentido nenhum.

Mas a religião cristã, o cristianismo, adotado como religião do Estado, serviu de sustentáculo a todos os senhores de escravos e a todos os dominadores da Idade Média e do feudalismo. A filosofia escolástica é a que servia a esses desígnios de exploração dos senhores de terras e dos barões feudais.

Quando a burguesia se levantou na França contra o feudalismo, insurgiu-se, precisamente, contra a religião, que fora o esteio de todos os senhores feudais. Aí, então, é a própria burguesia revolucionária que pretende estabelecer uma separação entre a igreja e o Estado.

Antes disso mesmo, na Alemanha feudal, tivemos a reforma de Lutero, que se ergueu contra a união existente entre os senhores e barões feudais de então e a Igreja. Em 1523 e 1525, a História pôde registrar movimentos da pequena nobreza e também dos camponeses, inspirados na reforma luterana. Mas Lutero, que representava os interesses da burguesia, não foi capaz de levar adiante sua reforma, passando-se, com armas e bagagens, para a própria nobreza, e a religião luterana ficou, então, como religião do Estado, dentro da Alemanha.

Na França, Calvino pregou, também, sua reforma, que, no fundo, representava as aspirações da burguesia que se insurgia contra os senhores feudais não conseguindo, porém, a vitória em sua terra natal. Mas o calvinismo se espalhou como religião, principalmente pela burguesia de países como a Holanda e Bélgica. E porque não tivesse conseguido a vitória, a burguesia, no tempo de Calvino, em 1789, por ocasião da Revolução Francesa, levantou-se muito mais seriamente contra a religião dando lugar ao materialismo do Século XVIII. Mas depois que a burguesia assegura o seu poder, reprimindo a religião ou estabelecendo com raízes mais profundas a separação entre a Igreja e o Estado, — porque isso interessava a ela própria, como classe, para que se libertasse daquela outra que o dominava anteriormente — logo a vemos numa posição contrária, quando o proletariado começou a aparecer como classe em si e para si.

Depois da revolução de 1848 a burguesia francesa, não estava mais interessada em manter o materialismo do século XVIII, em manter a separação entre a Igreja e o Estado. Para que a burguesia explorasse o proletariado lançava mão, novamente, da religião e procurava ligá-la ao Estado, embora, sob forma disfarçada. É o tempo em que surge o positivismo, que é uma filosofia reacionária para sua época, dentro da França, porque era uma doutrina criada com o intuito de esmagar o proletariado, a classe mais consequentemente revolucionária, destinada a libertar-se a si mesmo e a toda sociedade.

Eis aqui o que o ilustre historiador russo Scheglov afirma a respeito do positivismo:

“O positivismo de Comte significa um retrocesso em comparação com a filosofia da burguesia progressista e revolucionária, com o materialismo francês do século XVIII e com a dialética de HegelComte expressava o ponto de vista da burguesia já convertida numa classe reacionária,. preocupada em.esmagar a luta revolucionária da classe operária”.

E, assim, Sr. Presidente, explica-se porque, quando a burguesia está interessada em manter seu domínio, se vale da religião, procurando ligá-la ao Estado…”


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