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MARÇO DE 1964, MARÇO DE 2016

São PauloPor *Selvino Heck

Em março de 1964, eu tinha quase 13 anos e estava no Seminário Seráfico dos franciscanos em Taquari, Rio Grande do Sul, pré-adolescente filho de agricultores familiares, saído da roça um ano antes, começando a descobrir o mundo. As notícias, poucas, chegavam pelo Correio do Povo e os discursos anticomunistas de Carlos Lacerda tronitruavam pelos alto-falantes instalados nos amplos corredores do Seminário.

O medo do comunismo, preparado fazia tempo, junto com a desinformação, era geral. Dois grandes acontecimentos agitaram 1963. O assassinato do primeiro presidente americano católico, John Kennedy, um verdadeiro choque. E, combinado, as pregações do Pe. Peyton Brasil afora, inclusive Taquari, na sua Cruzada pelo Rosário em Família, e que resultaram nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, apoiadoras do golpe militar. O comunismo, travestido de João Goulart – Jango – e suas reformas de Base e os discursos incendiários de Brizola a favor da Legalidade e da Reforma Agrária, era a besta fera a ser combatida por quem acreditava em Deus e na família. Era o contexto da época e a senha para apoiar o golpe.

Foi meu batismo de compreensão do mundo. Assim 1964 e o golpe militar entraram na minha vida. Produziram o que produziram: fim da democracia por longos 21 anos, repressão aos movimentos sociais, cassações de mandatos populares, censura, mortes, tortura, exílios.

Março de 2016. Estou no governo federal. Nas ruas, cá e lá, ouve-se que o comunismo está chegando, pede-se a volta dos militares, prega-se o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, democraticamente eleita em 2014.

1964 e 2016 são iguais e diferentes. Iguais porque os conservadores, que nunca deixaram acontecer a Reformas de Base, hoje, mais uma vez, querem impedi-las de todas as formas. Iguais porque diz-se que a família e os valores cristãos estão ameaçados. Muito diferentes, porém, porque hoje há democracia, há movimentos sociais e populares mais fortes e organizados em todo pais, e os militares não estão colocando o pé na porta.

Mas a ilegitimidade de retirar um presidente eleito faz aproximar 2016 de 1964. Nos anos 60, Jânio Quadros foi eleito e renunciou. João Goulart, que só conseguiu tomar posse depois de muita mobilização social, foi apeado do poder por um golpe militar. Hoje, 2016, uma presidenta legitimamente eleita está ameaçada de ser apeada do poder por um golpe civil.

A Constituição de 1988 prevê o impeachment, que, aliás, já aconteceu em 1992 com o ex-presidente Collor, depois de intensa mobilização social e popular. Mas no caso do impeachment da presidenta Dilma, a situação é outra e diferente.

Escreve Juremir Machado da Silva (Correio do Povo, ‘Quando o impeachment é golpe’, 29.03.16): “Dilma vai ser julgada pelas pedaladas fiscais? Não é crime de responsabilidade. Tinha jurisprudência. O TCU validou. Tirar-lhe o cargo por isso é golpe. Um impeachment conduzido por um adversário vingativo, réu por corrupção, não tem legitimidade. É golpe. Um impeachment aprovado por investigados na mesma operação que atinge a acusada não é sério. Todos os citados na Lava-Jato deveriam se declarar impedidos de julgar Dilma. O Congresso Nacional não tem moral para fazer julgamentos sobre corrupção.”

Igor Fuser, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), escreve em ’10 coisas que o Brasil inteiro precisa saber’: “O pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff não tem NADA A VER com a Operação Lava-Jato, nem com qualquer iniciativa de combate à corrupção. Dilma não é acusada de roubar um único centavo. O impeachment é um golpe justamente por isso, porque a presidente só pode ser afastada se estiver comprovado que ela cometeu um crime – e esse crime não aconteceu, tanto que, até agora, o nome de Dilma tem ficado de fora de todas as investigações de corrupção, pois não existe contra ela nem mesmo a mínima suspeita. Além disso, na Comissão de deputados que analisa o pedido de impeachment, com 65 integrantes, 37 (mais da metade) estão na mira da Justiça, investigados por corrupção.”

A presidenta Dilma, em discurso no lançamento do Minha Casa Minha Vida 3 no Palácio do Planalto, sintetizou: “Impeachment está previsto na Constituição. Agora, é absolutamente má fé dizer  que por isso todo impeachment é correto. Para o impeachment ser correto exige que se caracterize crime de responsabilidade, é isso. Impeachment sem crime de responsabilidade é o que? É golpe.”

A cidadania e a voz do povo nas ruas estão se levantando com coragem contra o impeachment. Letícia Sabatella, em ato no Palácio do Planalto com artistas e intelectuais, falou: “Não querem tirar a Dilma pelos erros, mas pelos acertos. É preciso reconhecer a ascensão social da população brasileira. Foi só começar a distribuição de renda no país que começou a grita. Sou oposição a este governo, a senhora sabe. Mas eu vim hoje aqui clamar por democracia. Uma vez dado um passo, a gente tem que ir adiante.”

A diretora de cinema Anna Muylaert, autor do belo ‘Que horas ela volta’, retrato do Brasil dos últimos anos, e que dedicou a premiação recebida da Globo ao ex-presidente Lula e à presidente Dilma, ‘pai e mãe das Jéssicas’, a personagem do filme, disse: “As Jéssicas vão tomar o poder. No futuro, haverá uma Jéssica presidenta e o seu coração estará cheio de gratidão a Dilma.”

Em março de 1964, houve o golpe militar. Em março de 2016, o golpe civil será derrotado pela voz das ruas e pela consciência democrática da sociedade. A esperança derrotará o ódio e a intransigência e permitirá um futuro de paz, justiça e democracia para todo povo brasileiro.

*Selvino Heck

Departamento de Educação Popular e Mobilização Cidadã

Secretaria de Governo da Presidência da República

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