Uncategorized

Revistando o tema da suposta “nova classe média”

231112 novaO desafio central consiste na sustentação de um     crescimento vigoroso capaz de gerar empregos mais qualificados para estratos médios da população. Pescado do Diário Liberdade


Desde 2004, o Brasil vive um processo inédito de crescimento econômico com redução da pobreza. A recente incorporação de milhões de brasileiros ao mercado interno de consumo vem sendo reconhecida como importante conquista econômica e social, em tempos de severa crise internacional. Este fato vem sendo apregoado como a emergência de uma nova classe média no país. O que há de verdade e ficção nesse discurso?

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, a última década rompe com o padrão histórico da industrialização nacional, pelo qual o dinamismo econômico, quando ocorreu, sempre aprofundou as desigualdades sociais. Assim, entre 1960 e 1970, enquanto o ritmo de expansão da renda per capita atingiu o crescimento médio de 4,6% ao ano, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional caiu 11,7% (Comunicado nº 104, 2011).

Já no período 1981-2003, a renda do conjunto dos habitantes manteve-se praticamente estagnada (com variação média anual positiva de apenas 0,2%), mas a participação do rendimento do trabalho na renda nacional reduziu-se em 23% e pioraram significativamente os indicadores de desemprego e pobreza.

Desde 2004, contudo, o padrão muda, e a expansão da renda dos brasileiros coincide com a melhoria da situação geral do trabalho (ampliação da taxa de ocupação da mão de obra, formalização do emprego e redução da pobreza), o aumento da participação do trabalho na renda e o declínio da desigualdade. Cabe perguntar: quais as causas dessa mudança, única na nossa história econômica?

Uma interpretação correta, pois confirmada pelos fatos, é atribuir esse comportamento positivo do mercado de trabalho a quatro fatores. São eles:

O dispêndio público (o dos bancos públicos em primeiro lugar), fortalecendo os mecanismos de crédito interno;
Os programas de transferência de renda e seus efeitos multiplicadores, principalmente em áreas e setores deprimidos;
A retomada do crescimento econômico a partir de 2004, sustentado em boa medida pelos investimentos públicos alavancados pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC – e alicerçados no mercado interno, e
A política de valorização do salário mínimo, que permitiu crescimento real do seu poder de compra e elevação consistente da base da pirâmide salarial.
Outra visão, mais conservadora, credita à modernização da economia brasileira – a adoção de critérios neoliberais de abertura, desregulamentação e privatização – ocorrida a partir da década de 1990, o destravamento do mercado e a plena exposição da economia brasileira aos ventos da globalização (aliás, é surpreendente depararmos com leituras desse tipo em face da crise mundial derivada das finanças desreguladas…). Semelhante dinamismo teria despertado o “espírito empreendedor” de nossa gente e provocado o surgimento de uma “nova classe média” no Brasil atual. Decorre desse ponto de vista a identificação dos riscos aos eflúvios positivos da nossa estrutura social: o gasto público – supostamente excessivo e descontrolado – e o intervencionismo estatal. Essa mesma visão conservadora faz alarde do termo “nova classe média”, o qual não figura nos documentos e análises do IPEA (ao menos naqueles produzidos até a mudança na presidência do Instituto, em julho deste ano), já que nos parece indevida sua utilização à luz dos dados existentes. Aliás, o conceito carece de precisão, com pouca base teórica ou empírica para sustentar as definições.

O mesmo IPEA demonstra claramente que grande parcela dos postos de trabalho gerados na primeira década de 2000 concentrou-se na base da pirâmide social, pois 95% do saldo líquido das vagas abertas no período tinham remuneração mensal de até 1,5 salários mínimos. Já no segmento dos ocupados pertencentes às faixas de 1,5 a 3 salários mínimos houve a geração anual de ¼ dos postos de trabalho criados no segmento de até 1,5 salários, o que não deixa de ser também expressivo. Contudo, nas faixas dos trabalhadores sem remuneração e dos acima de 3 salários mínimos houve destruição líquida de ocupações. Que conclusão tirar desses números?

É simples: na primeira década do século XXI – mais precisamente, ao longo de sua segunda metade – ocorre um achatamento da pirâmide salarial, pelo crescimento significativo do rendimento do trabalho e das ocupações formais no segmento dos trabalhadores de base. Simultaneamente, observa-se estagnação na criação de empregos para as faixas acima de 3 mínimos, faixas estas cujos rendimentos começam a se aproximar do que se poderia compreender como classes médias, e não o segmento de renda per capita entre R$ 250,00 e R$ 1000,00, como o faz, paradoxalmente, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República – SAE/PR, a qual o IPEA está institucionalmente subordinado.

O que ocorre, na verdade, é o deslocamento importante da dinâmica do mercado de trabalho na direção dos serviços, acompanhando a tendência confirmada pelos novos padrões de funcionamento da economia contemporânea, em detrimento dos empregos industriais, submetidos a processos severos de reestruturação produtiva. Os serviços concentram um conjunto heterogêneo de ocupações. Das mais qualificadas e bem pagas a todo um conjunto de empregos de vencimentos próximos ao nível do salário mínimo. Pois foram as ocupações de salário de base pertencentes ao setor terciário, da construção civil e da indústria extrativa aquelas que experimentaram maior incremento, respondendo de forma incisiva aos estímulos originários, em larga medida, do gasto público e da nova inserção do Brasil no comércio internacional, exportando commodities para os países asiáticos. A disponibilidade do crédito interno irrigou os canais do consumo. Bens duráveis, e gastos com viagens e entretenimento, estão entre os itens mais disputados. Assim, parcela considerável da força de trabalho conseguiu superar a pobreza, “transitando para o nível inferior da estrutura ocupacional de baixa remuneração, porem, não mais pobre, tampouco de classe média”, afirma enfaticamente o IPEA.

O desafio central, doravante, consiste na sustentação de um crescimento vigoroso capaz de gerar empregos mais qualificados para estratos médios da população, mantendo a incorporação dos segmentos de menor renda e evitando uma nova polarização salarial no país, composta por extremos de altos e baixos rendimentos, como as atuais informações do mercado de trabalho parecem indicar. Para isso se requer, sobretudo, gasto público de qualidade e o reforço das políticas de desenvolvimento de corte regional. Ressalte-se, por fim, que a redistribuição observada ocorre no âmbito dos rendimentos do trabalho, pois a parcela do PIB abocanhada pelos segmentos rentistas e pelos que vivem dos lucros da propriedade imobiliária e dos meios de produção apresentou significativo aumento no mesmo período.

Para o amplo entendimento do tema, no viés analítico adotado no presente artigo, recomendamos a imprescindível e contundente análise do sociólogo mineiro Jessé Souza, em especial no livro Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? (Belo Horizonte, UFMG, 2010). Também o ensaio produzido pelo ex-presidente do IPEA, Marcio Pochmann – Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira (São Paulo, Boitempo, 2012) – aporta dados e elementos elucidativos, além de desvelar – na introdução da obra – o que está por trás das visões divergentes sobre o fenômeno presentes nas interpretações governamentais: “O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada comio uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e execução das políticas públicas atuais”.


Descubra mais sobre Luíz Müller Blog

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário