
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso criticou, nesta quarta (18), a mudança nas regras do combate ao trabalho escravo promovida pelo governo Michel Temer. E pediu para que ele reveja a portaria que alterou a fiscalização contra esse crime.
”Considero um retrocesso inaceitável a portaria do Ministério do Trabalho que limita a caracterização do trabalho escravo à existência de cárcere privado. Com isso, se desfiguram os avanços democráticos que haviam sido conseguidos desde 1995, quando uma comissão do próprio Ministério, ouvindo as vozes e ações da sociedade, se pôs a fiscalizar ativamente as situações de superexploração da força de trabalho equivalentes à escravidão”, afirmou através de sua conta no Facebook.
”Em um país como o nosso, no qual a escravidão marcou tanto a cultura, é inaceitável dificultar a fiscalização de tais práticas. Espero que o Presidente da República reveja esta decisão desastrada”, concluiu.
O governo Fernando Henrique criou, em 1995, os grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho, que são a base do sistema de combate à escravidão contemporânea no Brasil. Coordenados por auditores fiscais, eles verificam denúncias e resgatam trabalhadores, obrigado ao pagamento de salários e direitos trabalhistas atrasados. No mesmo ano, seu governo reconheceu, diante das Nações Unidas, a persistência de formas contemporâneas de escravidão no país – o que contribuiu para que o tema fosse debatido internacionalmente.
A fiscalização é o principal alvo da portaria publicada, nesta segunda (16), no Diário Oficial da União, que reduz as condições que caracterizam escravidão, dificultando a libertação de pessoas. A pauta é antiga demandas da bancada ruralista no Congresso Nacional, base de apoio do governo Temer e peça fundamental na rejeição à segunda denúncia movida pela Procuradoria-Geral da República contra ele.
A declaração de Fernando Henrique acontece no dia seguinte ao prefeito João Doria defender as posições da bancada ruralista sobre a portaria do Ministério do Trabalho. Recebido como pré-candidato à Presidência da República em um almoço da Frente Parlamentar da Agricultura, ele afirmou que apoia o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), que comanda a frente e defende a portaria.
”Eu endosso plenamente as posições apresentadas pelo deputado, que é do nosso partido. Então, a posição dele é a posição que eu endosso”, disse Doria.
Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida do trabalhador) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
A nova portaria estabelece a existência de cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de ”condições degradantes” e de ”jornada exaustiva”, ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo a lei, qualquer um dos quatro elementos é suficiente para caracterizar esse tipo de exploração.
Dessa forma, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passam a ser acessórias para os flagrantes de trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais e a concessão de seguro-desemprego aos resgatados. O texto da portaria obriga a todas as fiscalizações a obedecerem a nova interpretação do conceito.
Polêmica
A bancada ruralista e alguns membros de outros setores econômicos com incidência de trabalho escravo, como o da construção civil e vestuário têxtil, têm defendido que é difícil caracterizar ”condições degradantes” e ”jornada exaustiva”, o que geraria ”insegurança jurídica”. Técnicos do Ministério do Trabalho e procuradores do Ministério Público do Trabalho afirmam que há instruções e enunciados detalhados e conhecidos a respeito disso, além de jurisprudência e decisões do próprio Supremo Tribunal Federal.
A nova portaria reforça a questão do não consentimento do trabalhador para a caracterização de trabalho forçado. Hoje, em consonância com as Nações Unidas, as operações de resgates de pessoas têm considerado o consentimento irrelevante para a caracterização. Dessa forma, mesmo que uma pessoa aceite uma proposta de trabalhar só por comida, o Estado tem a obrigação de considerar tal ato como escravidão contemporânea.
Ela também condiciona a inclusão de nomes à ”lista suja” do trabalho escravo, cadastro de empregadores flagrados por esse crime que garante transparência ao combate à escravidão, a uma determinação do próprio ministro. Ou seja, a divulgação pode deixar de ter uma caráter técnico e passar a contar com uma decisão política.
As novas regras afirmam que, para serem válidos para levarem um empregador à lista, os autos de infração relacionados a um flagrante de trabalho escravo dependem da presença de um boletim de ocorrência lavrado por uma autoridade policial que tenha participado da fiscalização. Dessa forma, a palavra final sobre a existência de trabalho escravo pode sair das mãos de auditores fiscais, especialistas no tema, e passar para a dos policiais.
A portaria foi publicada menos de uma semana após a exoneração do coordenador nacional de fiscalização do trabalho escravo do próprio ministério, André Roston. Sua dispensa causou polêmica porque a mudança teria partido da base de apoio do governo no Congresso Nacional em meio às negociações para que não seja admitida a segunda denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer. Em depoimento ao Senado Federal, Roston havia informado que as operações de fiscalização de trabalho escravo estavam sem recursos financeiros.
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