Brasil/política

Ultradireita: a humanidade ameaçada (Por Kakay*)

“ Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espere a próxima: será pior. E pior, e pior… ”. (Ulysses Guimarães)

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Em cima, da esquerda para a direita, atos extremistas no Brasil e na Itália; abaixo, na mesma ordem, nos Estados Unidos e na França

Combater o avanço da barbárie global passa antes por uma reflexão sobre como nos posicionamos deste lado da trincheira, escreve Kakay

Noutro dia, em um dos vários grupos de que faço parte –sempre prometendo sair de alguns e não consegui–, critiquei, lamentando, o recrudescimento do direito penal no Brasil com os projetos que tramitam no Congresso Nacional. 

Constatava-se o que para mim era óbvio: com o fortalecimento da ultradireita, no país e no mundo, viveremos uma realidade em que os direitos humanos e as garantias individuais serão objeto de escárnio pela maioria. E, numa democracia como a que vivemos, essa tal maioria banca o jogo e dá as cartas. 

Veja, com grave preocupação, uma parte razoável da dita esquerda democrática sucumbindo às teses punitivistas para continuar no jogo com um olhar politiqueiro e sem nenhuma densidade ideológica ou humanista. 

Comentei que era cada vez mais difícil advogar no direito criminal. Recebi uma resposta interessante de um companheiro. Ele defende que, com o endurecimento do processo penal, os advogados terão mais e mais clientes, devido a essa onda de punir para dar exemplo de moralidade a uma sociedade ávida por conceitos que rasgam todos os princípios humanitários.

É sempre difícil entender o combate entre barbarie e civilização. Não vejo o direito penal sob o prisma das oportunidades de trabalho para o criminalista, embora entenda quem assim o faz. Minha visão procura ser sempre sob a perspectiva dos que sofrem e sofrerão a mão pesada do Estado punitivo. 

É disso que se trata a tensão permanente que permeia a política, cada vez mais dura, no enfrentamento da fúria punitiva que embala a direita mundial. Com essa onda política extremista, no Brasil e no mundo, estaremos progressivamente pregando no deserto. A pauta de costumes e a necessidade de acabar com garantias no âmbito criminal vão ser a tônica destes tempos que se anunciam brutos.

Uma das perplexidades que assola quem ainda quer pensar sobre a ótica das garantias individuais é a de como manter uma coerência humanista e competitiva com as teratologias desse crescente movimento ultradireitista. Hoje, a moda é posicionar-se-se separadamente, com a arrogância própria da ignorância, contra os direitos dos menos favorecidos, das minorias, dos negros, dos imigrantes e das mulheres. 

Enfim, ser contra a humanidade estrito senso dá voto e prestígio. Ser contra a inclusão social passou a ser chique em boa parte não só da sociedade, mas dos representantes políticos que adoram arrotar que o crescimento do pensamento direitista é o que interessa, pois mantém os privilégios dessa casta. 

Sim, é disso que se trata. Essa gente resolve assumir que é necessário mesmo aumentar o fosso para que não seja possível o acesso dos invisíveis a uma vida digna, com o pressuposto de que o mundo não comporta tanta gente dividindo o mesmo espaço. Na verdade, sempre foi meio assim, mas me parece que, agora, há uma determinação de mostrar que é necessário excluir os que pensam que é possível defender direitos para todos. Nós, democratas, viramos leprosos nesse mundo que se anuncia.

A resistência tem que ser contínua e deve passar, quero crer, por uma certa mudança nos nossos debates. A divergência com o pensamento bárbaro da extrema-direita, muitas vezes fascista, é uma consequência lógica do nosso jeito de estar no mundo. Mas penso que é necessária uma reflexão sobre os que, em tese, estão do mesmo lado da trincheira. 

A postura de sempre ceder para sobreviver politicamente está, em muitos momentos, fortalecendo a barbárie. Há uma falta de estímulo de pensamento crítico. A opção pelo desprezo aos direitos humanos na área criminal – sim, é disso que se trata – parece ser uma batalha já ganha pelos que defendem a tese de que nós somos defensores de bandidos e que bandido bom é bandido morto. Antes de enfrentar os nossos velhos e conhecidos oponentes, faz-se necessário voltarmos para uma definição de postura dos que, teoricamente, terão espadas conosco pelo bom combate.

É preciso uma reflexão sobre como nos posicionar. Se a ultradireita está crescendo assustadoramente e se compartilhando com um orgulho desdenhoso, o nosso recuo não estará fazendo o jogo da barba? 

Sempre defendemos que temos que estar do lado da civilização e não podemos adotar os métodos daqueles que combatemos – pois, senão, perderemos a batalha que interessa. É um pouco o que estamos vivendo neste momento dramático de Trump, Le Pen, Milei, Bolsonaro e que tais. Não devemos pensar em manutenção política, o que me parece estar em jogo é muito mais. É a sobrevivência civilizatória. É disso que se trata e cabe a cada um dar um passo à frente.

Sempre nos lembrando de Ernest Hemingway:

“–Quem estará nas trincheiras ao seu lado?

“–É isso importante?

“–Mais do que a própria guerra”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tem 66 anos. Nasceu em Patos de Minas (MG) e cursou direito na UnB, em Brasília. É advogado criminal e já defendeu 4 ex-presidentes da República, 80 governadores, gangues de congressistas e ministros de Estado. Além de grandes empresários e banqueiros


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2 pensamentos sobre “Ultradireita: a humanidade ameaçada (Por Kakay*)

  1. Gostei do artigo, entre outras coisas porque o Kakay não fica focando exclusivamente na chamada extrema-direita.  Temos visto boa parte da nossa esquerda a centrar a culpa nesse segmento pelo perigoso descenso de valores de relevada importância. 

    Tais valores foram conquistados pela humanidade e passaram a ser admitidos por boa parte dela – não de toda, como sabemos -, a duras penas, a não mais que uns 250 anos, podemos afirmar. 

    Me parece que os que se dizem democratas e respeitadores da lei são a maioria.  Então, fica a questão: por que é que essas ideias imputadas exclusivamente à extrema-direita vêm prosperando? 

    Creio que, se os que se situam do centro até a extrema-direita, exclusive, fizessem valer seu compromisso verdadeiro com a democracia, os extremistas ficariam relegados a um contingente pequeno, que faria algum barulho, mas não teria potencial para ameaçar os valores democráticos conquistados.

    Contudo, o que podemos notar é que, para essa turma, antes de suas convicções democráticas vem a manutenção do status quo, do sistema econômico-produtivo no qual está imersa a maioria da humanidade, o capitalismo. 

    Uma contradição insolúvel, pois, para se perpetuar, o capitalismo, como é mais do que provado, precisa ir desmantelando qualquer resquício de democracia, à medida em que, por vias ditatoriais, ainda que não raro escamoteadas, vai impondo seus desígnios.

    Notei que há, disponível no You Tube, uma recente entrevista feita pelo Brasil de Fato com o eminente jurista Alysson Mascaro.  Como “chamada” para a entrevista, o BDF cita uma declaração do jurista: “O capitalismo, quando entra em crise, vai para a extrema-direita”.

    Creio que o problema passa por aí e já passu da hora de a esquerda parar de se esquivar desse debate e encará-lo de frente, apontando abertamente a insolúvel contradição entre capitalismo e vida digna para todos, mostrando que este sistema não tem como se coadunar com a necessária preservação ambiental e com a paz tão desejada entre os povos. 

    Paz que, se, lamentavelmente, não é desejada por todos, deveria sê-lo, com toda contundência, pela grande maioria que é de onde sairão os que serão mortos ou terão suas vidas dilaceradas pela ganância sem fim dos capitalistas.

    Em tempo.  Ainda não assisti à entrevista de Alysson Mascaro, mas não vou perdê-la.

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  2. ¿POR QUÉ SE SORPRENDEN DE LOS AVANCES DE LA ULTRADERECHA?

    Por Sergio Rodríguez Gelfenstein

    Afinal, por que será que a extrema-direita observou crescimento eleitoral tão vultoso em ditos democráticos da Europa Ocidental e mesmo nos Estados Unidos nos últimos anos?

    Os ditos democratas que comandam tais países já há décadas nada teriam a ver com esta ascensão?

    Num longo artigo, o diplomata venezuelano, Sergio Rodríguez Gelfenstein, expõe uma série de fatos a comprovarem que EUA e Europa Ocidental deram guarida a milhares de membros egressos do Terceiro Reich, integrantes fiéis do nazismo hitlerista e os colocaram a ocuparem altos cargos na Otan, na ONU e no governo de países.

    Ou seja, as democracias ocidentais “mantiveram vivo” o nazi/fascismo hitlerista.

    “Dessa maneira, o espírito e a doutrina nazi/fascista se impregnou na Otan desde sua fundação.  De igual maneira, os descendentes dos nazis seguem tendo muita influência na Europa atual”, afirma Gelfenstein ao se reportar ao livro de David A. Hughes, lançado neste ano, livro que “proporciona uma análise completa da economia política da Alemanha nazista da década de 1930 e a economia política do Ocidente em 2020”.  David A. Hughes é doutor em Estudos Alemães e Relações Internacionais

    Exemplo gritante da proteção dada a nazistas, conforme Hughes, é o de Kurt Waldhein, que foi oficial da Werhmacht e, “anistiado” pelas democracias ocidentais, foi secretário-geral da ONU por nada menos de 9 anos e, após isso, ocupou a presidência da Áustria de 1986 a 1992.

    Hughes cita também a Operação Paper Clip, pela qual o governo dos EUA “recrutou a mais de 1600 cientistas, engenheiros e técnicos nazistas” e os pôs a trabalharem para seus interesses geopolíticos e geoestratégicos.  A não poucos desses recrutados, coube a tarefa de assessorar as inúmeras ditaduras que os EUA impuseram aos povos latino-americanos e de outras partes do planeta na arte da repressão aos movimentos populares.

    Gelfenstein se reporta a um artigo escrito pelo ex-tenente espanhol Luiz Gonzalo Segura: “Para se ter uma ideia desse avanço tão brutal da ultradireita, basta assinalar que não tinha representação parlamentar no ano de 2010 na Estônia, Eslovênia, Eslováquia, República Checa, Alemanha, França, Portugal ou Espanha.  Agora não só tem nesses países como aspira a governar”.

    O diplomata venezuelano cita ainda outro trecho interessante do artigo em que Segura liga o crescimento da ultradireita diretamente à crise do sistema capitalista: “é a válvula de escape de que se utiliza a onda de opressão capitalista para liberar tensões e regular a temperatura.  É o batalhão com o qual as elites mantêm seu poder quando chega a hora de arrochar a cidadania – aumento da desigualdade e da pobreza enquanto cresce o número de milionários – e, chegado o caso, a ultradireita é também um mal menor”. –

    Luis Gonzalo Segura foi expulso das forças armadas da Espanha por denunciar corrupção, abusos e outros comportamentos pouco nobres na corporação.

    O interessantíssimo artigo de Sérgio Rodríguez Gelfenstein foi publicado em duas partes.  Para lê-lo na íntegra, basta acessar os links a seguir.

    https://rebelion.org/por-que-se-sorprenden-por-los-avances-de-la-ultraderecha-i/

    https://rebelion.org/por-que-se-sorprenden-por-los-avances-de-la-ultraderecha-y-ii/

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