
Mariana Mazzucato
Giulio Quaggiotto
Texto original em: https://bit.ly/2Xl e tradução de DESAJUSTE
Décadas de privatização, terceirização e cortes no orçamento em nome de “eficiência”prejudicaram significativamente as respostas de muitos governos à crise do COVID-19. Ao mesmo tempo, respostas bem-sucedidas de outros governos mostraram que os investimentos nas principais capacidades do setor público fazem toda a diferença em tempos de emergência.
Os países que lidaram bem com a crise são aqueles em que o Estado mantém um relacionamento produtivo com criadores de valor da sociedade, investindo em capacidades críticas e criando contratos do setor privado para atender ao interesse público.
Dos Estados Unidos e do Reino Unido à Europa, Japão e África do Sul, os governos estão investindo bilhões – e, em alguns casos, trilhões – de dólares para sustentar as economias nacionais. No entanto, se aprendemos alguma coisa com a crise financeira de 2008, é que a qualidade importa tanto quanto a quantidade. Se o dinheiro cair em estruturas vazias, fracas ou
mal gerenciadas, terá pouco efeito e poderá ser simplesmente sugado para o setor financeiro.
Muitas vidas estão em risco para repetir erros do passado.
Infelizmente, durante o último meio século, a mensagem política Predominante em muitos países tem sido que os governos não podem – e, portanto, não deveriam – realmente governar.
Políticos, líderes empresariais e especialistas há muito tempo confiam em um credo gerencial que se concentra obsessivamente em medidas estáticas de eficiência para justificar cortes de gastos, privatização e terceirização.
Como resultado, os governos agora têm menos opções para responder à crise, e talvez por isso alguns deles estão se apegando desesperadamente à esperança irrealista de panacéias tecnológicas, como inteligência artificial ou aplicativos de ‘rastreamento de contatos’. Com menos investimento em capacidade pública, houve perda de memória institucional (como o
governo do Reino Unido descobriu) e aumento da dependência de empresas de consultoria privadas, que arrecadaram bilhões. Não surpreende que a motivação dos funcionários do setor público tenha caído nos últimos anos.
Considere duas responsabilidades principais do governo durante a crise do COVID-19: saúde pública e a esfera mundo. Somente em 2018, o governo do Reino Unido terceirizou contratos de saúde no valor de £ 9,2 bilhões (US $ 11,2 bilhões), colocando 84% das camas em casas de repouso nas mãos de operadores do setor privado (incluindo empresas de private equity).
Para piorar as coisas, desde 2015, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido sofreu £ 1 bilhão em cortes no orçamento.
Terceirização por si só não é o problema. Mas a terceirização de capacidades críticas do Estado nitidamente é, especialmente quando as “parcerias” público-privadas resultantes não são projetadas para servir ao interesse público. Ironicamente, alguns governos terceirizaram tão ansiosamente que minaram sua própria capacidade de estruturar contratos de terceirização. Após um esforço de 12 anos para estimular o setor privado a desenvolver ventiladores de baixo custo, o governo dos EUA agora está aprendendo que a terceirização não é uma maneira confiável de garantir o acesso emergencial a equipamentos médicos.
Enquanto isso, a abordagem bem-sucedida do Vietnã ao COVID-19 surgiu como um contraste impressionante com as respostas dos EUA e do Reino Unido. Entre outras coisas, o governo vietnamita conseguiu reunir kits de testes de baixo custo muito rapidamente, porque já tinha a capacidade de mobilizar a academia, o exército, o setor privado e a sociedade civil em torno de uma missão comum. Em vez de simplesmente terceirizar sem questionamentos, ele usou fundos públicos de P&D (pesquisa e desenvolvimento) e aquisições para impulsionar a inovação. A colaboração público-privada resultante permitiu a rápida comercialização de kits,
que agora estão sendo exportados até para a Europa.
A Nova Zelândia é outra história de sucesso, e não por coincidência. Depois de adotar inicialmente o mantra da terceirização na década de 1980, o governo da Nova Zelândia mudou de rumo e adotou um “espírito do serviço” e uma “ética do cuidado” em seus serviços públicos, se tornando o primeiro país do mundo a utilizar de um orçamento para o bem-estar. Devido a essa visão de gestão pública, o governo teve um postura diante da atual crise de “saúde em primeiro lugar, economia em segundo”. Em vez de buscar a imunidade do rebanho, comprometeu-se cedo a prevenir a infecção.
Lições semelhantes se aplicam a dados e tecnologia digital, domínios em que o desempenho dos governos variou amplamente. No Paquistão, os cidadãos puderam solicitar transferências de dinheiro emergenciais (disponibilizadas para impressionantes 12 milhões de famílias)
diretamente de seus telefones celulares, enquanto os italianos tiveram que imprimir auto-avaliações para mostrar que estão cumprindo as regras de quarentena.
Certamente, os governos do sul da Ásia se beneficiaram da memória institucional construída durante a epidemia da SARS em 2002-03, que também alterou posicionamentos com relação à
privacidade. Mas muitos desses países também investiram em seus principais recursos de dados, que foram particularmente eficazes ao facilitar ações descentralizadas. A Coréia do Sul, por exemplo, adotou uma abordagem agressiva de rastreamento de alta tecnologia e publicou dados em tempo real sobre estoques de máscaras e locais de farmácias, permitindo que startups e cidadãos comuns criassem serviços complementares para garantir uma distribuição mais eficaz e segura.
Os contrastes entre EUA e Reino Unido, por um lado, e Vietnã, Coréia do Sul e Nova Zelândia, por outro, oferecem lições importantes. Longe de retroceder para a função de reparador das falhas de mercado e terceirização de serviços, os governos devem investir em suas próprias
capacidades fundamentais. A pandemia revelou a necessidade de mais ação produtiva pelo Estado, capacidade de compras governamentais, colaborações público-privadas simbióticas, infraestrutura digital e protocolos claros de privacidade e segurança.
Tal abordagem dirigida por objetivos da administração pública não deve ser confundida com a tomada de decisões de cima para baixo. Em vez disso, deve ser vista como a melhor maneira de garantir dinamismo, favorecendo relacionamentos frutíferos entre inovadores e aproveitando o valor da inteligência pulverizada na sociedade. Os governos que há muito abdicam de seus deveres com o setor privado agora precisam se atualizar, o que exigirá que eles repensem os regimes de propriedade intelectual e sua abordagem em P&D, investimentos públicos e aquisições de maneira mais geral.
Por que, para dar um exemplo concreto, um ventilador de baixo custo que foi aprovado pelos reguladores no Japão não deve ser prontamente aceito por outros países? Claramente, além de um papel renovado para os governos nacionais, precisamos de uma câmara de cooperação
internacional para soluções vindas de baixo e lideradas por cidadãos.
Em qualquer crise – financeira, de saúde pública ou relacionada ao clima – a falta de escolha limita drasticamente o espaço de manobra do setor público. Após anos perseguindo um modelo de governança equivocado, os formuladores de políticas de todo o mundo certamente lamentam a falta de know-how e recursos internos para implantar as ferramentas digitais
necessárias para salvar vidas. Governança eficaz, pelo que temos visto, não se produz por voluntarismo.